terça-feira, 3 de novembro de 2009

Entrevista: Eliana Sousa Silva*

Durante o período de organização do I Seminário de Educação da Maré, a equipe de comunicação da Redes entrevistou algumas pessoas que estão envolvidas com o evento para saber suas opiniões sobre temas ligados à educação e ao seminário. Confira!



*Eliana Sousa Silva é Doutora em Serviço Social e Diretora da Redes de Desenvolvimento da Maré.











1. Você defendeu recentemente sua tese de doutorado discutindo o “Contexto das Práticas Policiais nas Favelas da Maré”. Quais são as considerações centrais de sua análise?

      Há várias outras reflexões trazidas pela análise do contexto das práticas dos policiais militares na Maré. Aponto na tese muitas questões que me parecem relevantes para dimensionar devidamente o fenômeno da violência e da segurança pública. Em primeiro lugar, um aspecto muito importante para mim na elaboração da tese, foi o contato com os policiais do Batalhão na Maré. Tive, assim, condições de lidar com eles de outra forma, e compreender melhor o sentido de suas ações – o que não me leva, naturalmente, a justificá-las. Tive também condições, no processo de entrevistas, de melhor compreender as percepções dos entrevistados, sejam eles os moradores, os integrantes dos grupos armados ou os policiais, o que permitiu uma maior “humanização” desses personagens. Desse modo, foi possível apreender o caráter estruturante do problema da violência, o sofrimento de todos os envolvidos com o fenômeno e os limites presentes nas estratégias vigentes no campo da segurança pública.

Nessa compreensão global do quadro da segurança e da violência, cabe aqui destacar dois aspectos centrais: o primeiro diz respeito à profunda distância entre a polícia e os moradores da Maré. Esse hiato não foi superado nem mesmo depois da instalação, em 2003, de um Batalhão na região. Quanto falo de distância, quero enfatizar que não existe uma relação entre o que deveria ser a atividade principal do órgão - a garantia da segurança dos que ali residem, e suas práticas cotidianas. De fato, a polícia não trabalha para garantir esse direito; pelo contrário, seu objetivo é o enfrentamento bélico com os grupos criminosos armados que dominam o território, mesmo colocando em risco a vida do conjunto dos cidadãos locais.

O fato assinalado ocorre porque, historicamente, o Estado não exerceu a soberania nas favelas e periferias do Rio de Janeiro. Soberania significa a capacidade de uma instituição, em geral o Estado, garantir a regulação da ordem social, o cumprimento de regras coletivas, em um território determinado. Essa soberania estatal é fundamental para garantir que direitos básicos, como a preservação da vida e de ir e vir, dentre outros, possam acontecer no conjunto da cidade, inclusive nas favelas. Nesse sentido, ocorreu a privatização da regulação da ordem nos territórios populares. Assim, a segurança pública, que deveria ser para todos os cidadãos, vem sendo pensada em função, apenas, dos segmentos dominantes da sociedade. Portanto, há que se superar as representações e práticas fragmentadas do espaço da cidade, integrando os territórios das favelas como parte constitutiva do espaço urbano.

Para isso, precisamos superar os paradigmas do “enfrentamento bélico” e da “guerra às drogas” como referências centrais da concepção de Segurança Pública. Há necessidade de construir um novo paradigma para a Segurança Pública, centrado no conceito de Segurança Pública Cidadã. Ele pressupõe, por exemplo, que a Segurança Pública não pode ficar somente nas mãos das corporações policiais, pois não será a partir dela que as transformações necessárias ocorrerão. A sociedade civil e outros setores do Estado são fundamentais no processo de construção de alternativas.

A hegemonia atual da estratégia das forças de segurança é reforçada pelas limitações ainda presentes, por parte da grande maioria dos moradores da cidade, na compreensão dos direitos de cidadania, na afirmação de uma cultura republicana e de pouca valorização dos direitos humanos. Assim, curiosamente, já há instrumentos conceituais, técnicos e políticos para construir outra política de segurança pública, efetivamente cidadã; mas, para isso, precisamos superar as representações tradicionais e convencer a população de que essa estratégia não é inevitável, que outros caminhos são possíveis, e com muito mais chance de conseguir atingir os seus objetivos.  Nesse caso, devem ser levados em conta os atores envolvidos no processo, repensar a relação histórica da população com os órgãos de segurança pública e difundir, de forma sistemática e ordenada, as novas formulações e propostas.

 Referindo-me ao debate sobre as Unidades Policiais Pacificadoras – UPPs, que está na ordem do dia, é importante observar que ela, nos mesmos termos do paradigma vigente, não considera outros atores no processo de ocupação do território. Ela é, basicamente, uma ação policial. Em especial, ela desconsidera em sua ação os moradores das áreas onde acontece a intervenção. O exemplo mais expressivo foi o fato de policiais assumirem a direção da Associação de Moradores da Favela do Batan, fato gravíssimo e cujas implicações foram ignoradas pela mídia. Do mesmo modo, o poder de regulação da ordem social por parte dos comandantes das unidades que atuam em outra favela dá a sensação de que houve, simplesmente, uma mudança de “dono”, pois a lógica anterior prevalece.

Temos, de fato, um processo em que a regulação da vida social nessas favelas deixa de ser feita por grupos armados e passa a ser feita por representantes do Estado, de maneira autoritária e, em alguns casos, com violação de direitos. A questão para mim, nesse caso, é se temos aí uma experiência que garante direitos básicos dos moradores de favela no campo da segurança ou se é mais um projeto centrado no controle autoritário do espaço local e mais preocupado com os seus efeitos midiáticos do que com os direitos fundamentais dos moradores.

2. Qual a relação entre Educação e Segurança Pública e quais têm sido os desafios das escolas, das instituições e projetos de educação na Maré em lidar com os conflitos locais?

         A relação entre Educação e Segurança Pública, assim como outras necessidades básicas - saúde, cultura, lazer, habitação etc – apresenta-se dentro do campo dos direitos primordiais de cada cidadão. Infelizmente, nos territórios das favelas e periferias esses direitos fundamentais não chegam a todos os moradores. No caso da segurança pública, o problema ainda é mais grave, pois esse direito não chega a morador algum; todos estão sempre em risco de sofrer as consequências de uma estratégia falida de segurança, centrada apenas no combate a um tipo específico de crime, no caso, a venda de drogas nas favelas.

 No caso da Educação, temos hoje um quadro quase de universalização do acesso no país, com mais de 97% das crianças matriculadas na escola. A democratização do acesso, portanto, à educação desses brasileiros foi quase inteiramente garantida, embora seja ainda um escândalo termos mais de um milhão de crianças sem acesso a um direito tão essencial.

A partir da democratização do acesso, afirmou-se de forma premente o desafio da qualidade do ensino na maioria das escolas públicas e privadas. Nas favelas, essa questão é ainda mais urgente. Dentre muitas razões, os limites na qualidade do trabalho pedagógico nas favelas são agravados pelos conflitos nela comuns. Eles geram um alto grau de violência letal e comprometem o cotidiano das unidades escolares, bem como de outras instituições; no caso da Maré, essa situação é gravíssima.

Entendo que tem havido, até o momento, certa passividade e omissão das autoridades e dos atores locais a respeito dessa restrição de direitos, no sentido de se pensar o que cada um tem a ver com esse problema. A interrupção das atividades escolares causadas por interferências externas, o medo de se criar situações nas quais os dirigentes sejam questionados e, mesmo, colocados em risco, têm gerado uma situação de imobilidade e inércia que acarreta a perda de sentido e da missão a que as organizações educacionais se propõem.

Penso que a não aceitação, a indignação, a resistência, a mobilização dos moradores, baseadas na compreensão de que é necessário romper com a lógica de que não se pode fazer nada nesse caso, são práticas fundamentais para a garantia da soberania do Estado de Direitos, como apontei na questão anterior.


3. Qual a importância do I Seminário de Educação da Maré para o processo de superação desses desafios?

       O I Seminário de Educação na Maré é resultado de um processo de trabalho conjunto que a Redes de Desenvolvimento da Maré vem realizando junto às escolas da Maré. É um marco, no sentido de rompermos com a lógica de que não se pode fazer nada em relação ao conjunto de questões que interferem no cotidiano escolar. É uma iniciativa que mostra a possibilidade e a força organizada dos profissionais de educação. Viabilizar esse encontro significa, ainda, que começamos a olhar de outra forma para a violência cotidiana, que tem determinado e regulado a vida social dos moradores da Maré. É, sem dúvida, a chance que temos de nos envolver com uma questão pela qual somos diretamente afetados e que tem restringido em muito os direitos dos moradores locais.

            O resultado dessa iniciativa será o planejamento conjunto de todas as escolas de ensino fundamental da Maré, no sentido de melhorar o desempenho escolar dos alunos, bem como a busca de que as unidades escolares da região alcancem os desejáveis indicadores educacionais.

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I Seminário de Educação da Maré: refletindo sobre o ensino fundamental

Inscrições
As inscrições para o seminário estão encerradas.

Publicação
Como desdobramento do seminário será publicado o livro "Escola, Violência e Segurança Pública: caminhos possíveis para a melhoria da Educação na Maré". A Redes da Maré, através do Núcleo de Pesquisas em Favelas e Espaços Populares, está recebendo os artigos dos profissionais de educação da Maré. Participe! Compartilhe e divulgue suas produções acadêmicas, artigos e relatos de experiência.

Acesse aqui o edital final.

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Agenda
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Alimentação
Informamos que a comissão organizadora negociou com o Restaurante Fundão Grill para fornecer a alimentação no dia do Seminário. O kilo custa R$ 22,90 e o estabelecimento não aceita cartão de crédito, aceitando como forma de pagamento apenas cartão de débito e dinheiro.


Como chegar

Veja como chegar ao local do seminário, acessando o Mapa do Fundão.

Dia do seminário: 07 de novembro de 2009
Horário: 8h às 17h
Local: Centro de Ciências da Saúde – CCS – na Ilha do Fundão
Auditório: Auditório Quinhentão
Mais Informações: (21) 3105-5623